Os dias eram todos parecidos, mesma rotina, mas algo estava ficando diferente. Alguns já sentiam a inquietude como um peso no ar, inexprimível.
Belém, 2002.
Era preciso ter passos de gato para sair da casa espetada na palafita sobre as águas inquietas do verão molhado. Zaqueu evitava acordar a família ao sair para o trabalho, e então já deixava bermuda, camiseta e chinelo bem ao lado da rede e deslizava para fora ainda no escuro. Pequeno e franzino, esgueirava-se entre os barracos e varais para sair daquele viveiro humano. Toda madrugada ele parava apenas para estender a caneca de lata para a velha da barraquinha enchê-la com a papa de açaí com tapioca que ia comendo pela longa caminhada até a obra, do outro lado da cidade.
Valia tudo para poupar, até mesmo a passagem do ônibus. Na mochila, a marmita. O vale refeição ficava em casa, um jeito da mulher comprar a mistura do jantar. Tanta economia, e Zaqueu ainda não tinha conseguido juntar o suficiente para comprar um mimo para o Natal dos meninos mais a sua Dilcléia. Mesmo assim agradecia todo dia ter conseguido emprego em Belém, para onde voltou depois de ter sido cortado da usina de Tucurui.
Entretido em pensamentos, nem sentia o tempo passar e logo estava se juntando à equipe, reunida para ouvir as ordens do dia transmitidas pelo encarregado do setor, segundo planos dos engenheiros. Ele sabia que aquele prédio que ajudava erguer era exatamente igual a muitos levantados na cidade, via isso diariamente no trajeto. Todos modernos, mesmo material, acabamento e, sobretudo muito vidro azul por fora.
Zaqueu achava lindo. Só não sabia que aqueles edifícios ferviam sob o sol farto do Pará, e que para ser suportável viver ou trabalhar lá dentro, muito ar condicionado teria que ser consumido. Desconhecia também que cada vez mais os prédios eram iguais, no país e no mundo. Afinal, ele era apenas mais um naquele exército de operários anônimos fazendo pedaços do mundo ao moldar suas peças num universo de cópias.
Achava estranho tudo andar tão parecido, mas vivia tranquilo de certa forma, sempre de olho nas grandes obras do governo que pagavam bem mais e ainda davam moradia. Não tinha ouvido falar do recente vazamento radiativo de Angra.
Dourados, 2005
O sol daquela manhã mais parecia bigorna batendo no corpo sem dó. Nos últimos anos, a estiagem se estendia muito além do esperado. O pasto seco, de um verde amarelado tornava a paisagem monótona. Tanto quanto a vida daqueles animais que Malaquias ajudava a tocar, dia após dia, naquelas terras gigantes, agora nas mãos dos gringos que, aos poucos, foram introduzindo o seu jeito de lidar com o negócio.
Ele que nasceu na região foi testemunha de como tudo foi mudando nos últimos tempos, quando Mato Grosso do Sul passou a ser o maior estado exportador de carne bovina do país. Primeiro, foi o dinheiro que começou a aparecer mais farto nas mãos das pessoas, depois os costumes. Até sua Lenice andava diferente. Depois que começou a trabalhar como arrumadeira no maior hotel da cidade e a tomar a tal da pílula, ela ficou mais segura, entregava para ele seu corpo, mas o coração ele não sentia.
Namoraram desde pequenos e agora viviam juntos no barraco nos fundos da casa da família dele e que, nas noites de lua cheia, ficava tomado do cheiro de dama-da-noite. Mas para ele, Lenice cada vez se mostrava menos dama e mais arisca, mundana. Desconfiava que ela estava de caso com aquele biólogo todo emproado, recém-contratado na fazenda. Mas ela brincava, dizendo que tudo era fantasia da sua cabeça de rapaz antiquado e caipira.
Caipira era mesmo e sentia-se incomodado que nos últimos tempos o lugar tivesse perdido o sossego habitual. Era tanta gente nova circulando por ali, veterinários vindos da capital, químicos, biólogos, gente que ele nem entendia direito a função. Até um laboratório os patrões mandaram construir na fazenda e tinha vez que surgiam uns gringos de fala estranha especializados em inseminação. Malaquias simplesmente não entendia por que tanto interesse nisso que foi gerando um gado diferente.
Naquele calor medonho sem fim, surgiu na tarde um vento raro açoitando as nuvens e os medos de Malaquias. Ele vinha de uma longa linhagem de operários do campo e por isso aprendeu ainda no berço a reconhecer o que a terra e os bichos queriam dizer. Podia ser simples e pouco ter estudado, mas de uma coisa tinha certeza: as coisas estavam diferentes por ali e os animais andavam estranhos, engordando mais que o normal, prontos para o abate antes do tempo. Era uma coisa sutil, impossível de precisar, mas da qual ele tinha receio.
Goiânia, 2007
Raquel definia-se uma sobrevivente. Afinal, saiu ilesa do acidente radiológico ocorrido ali vinte anos antes, quando um equipamento roubado de hospital foi desmontado, e o desmanche foi desenhando um rastro de desgraça: 29 mortos, mais de cem mil pessoas expostas à contaminação.
O desastre produziu uma cicatriz indelével na alma daquela cidade e levou sua mãe depois da dolorosa agonia que jamais lhe saiu da lembrança. Nesse período, muito jovem ainda, talvez para suportar a carga, Raquel exacerbou o sexo de tal forma, que pegou gosto pela atividade. E mesmo sem precisar se preocupar com finanças, ela decidiu transformar o dom natural em profissão. Montou uma casa nos arredores da cidade e, aos poucos foi contratando reforço.
Foi seu tio Efraim quem a cultivou para essa arte desde pequena, o primeiro a boliná-la, o primeiro que viu o seu corpo por inteiro, que a inaugurou e quem lhe ensinou o velho jogo de esconder e revelar, valorizando os atributos. Um dia, tio Efraim tombou na mira da arma de um marido traído, tirando dela a delícia da cumplicidade, o afeto escondido de todos, mas ficaram os ensinamentos para administrar o negócio.
Ao passar dos 40, a morena Raquel tinha clareado os cabelos e, mais roliça e sensual, continuava a construir sua lenda. Com mãos de ferro e gestos de veludo ela conduzia o estabelecimento mais procurado por fazendeiros, empresários, viajantes e todo aquele com dinheiro no bolso em busca de prazer instantâneo. Sem preconceitos para os obesos, velhos, aleijados, tímidos, gagos, feios e adolescentes, rejeitados eram bem recebidos. E as garotas molhavam os lençóis sob o jugo justo, porém exigente daquela mulher. Seu conselho mais regular era: busquem prazer no trabalho, essa é a chave. E disso ela falava com a propriedade de quem nasceu para o ofício.
Apesar de administrar tudo de perto, salão, cozinha, quartos, saúde das meninas, contabilidade, ela ainda atendia clientes especiais em nome da velha camaradagem, ou então aqueles dispostos a pagar o seu preço que era o mais alto da casa. E foi justo a vasta experiência que a fez notar que algo estava diferente. Nada a ver com radiação do passado, nem com o velho medo de que algo do gênero voltasse a ocorrer. O que a incomodava tinha mais a ver com uma mudança provocada pela Internet, fenômeno bem mais recente.
Agora, até os mais broncos e atrasados já tinham acesso à banda larga. Muitos homens vinham suprindo suas necessidades de forma virtual. Outros usavam esse meio para acertar encontros fáceis com esposas entediadas em busca de emoção, meninas curiosas ou até amadoras fogosas espalhadas pela região sem que precisassem gastar muito verbo ou um centavo sequer nessa sedução.
Um dia suas suspeitas se confirmaram: uma das suas meninas estava usando o computador para marcar programas fora dali. Pior, soube que uma jovenzinha rica da cidade alugou um flat só para atender clientes atraídos pela suas formas na web, e nem tinha mais horário disponível. Era muita concorrência. Claro que a clientela diminuiu um pouco, e foi preciso diminuir o quadro. Nada alarmante, porém um sinal de perigo iminente. E Raquel se perguntava: será que a Internet seria capaz de mudar velhos hábitos a esse ponto? Poderiam as máquinas se sobrepor aos homens com suas vontades de sistema?
São Paulo, 2012
Há algum tempo que Carlos Eduardo andava acabrunhado. Ele seguia acumulando o emprego mais as aulas que dava na universidade sobre o tema que dominava: o branding e todo processo de construção de uma marca. Competente, era disputado pelas maiores companhias. Fascinava-o poder levar as marcas além da sua natureza econômica, fazendo-as ser parte da cultura, influenciando e simplificando a vida das pessoas, num mundo de relações cada vez mais confusas, complexas e desconfiadas, num planeta que continuava a aquecer dia a dia, habitado por seres cada vez mais frios.
Era um competidor, um workaholic incapaz de conseguir dissociar trabalho e vida pessoal. Os poucos amigos tinham ligação com o trabalho, inclusive a mulher. Tinha preguiça, incapacidade mesmo de conviver com o diferente. Tanto talento e autoestima exagerada resultaram em péssima qualidade de vida, insônia e até episódios de impotência cada vez mais frequentes, mesmo ele ainda sendo jovem. A pressão o assombrava, tinha pavor de fracassar, e já não conseguia conter os surtos de mau humor e agressividade quando desapontado. Era depressão, mas ele jamais admitiria.
O que Carlos Eduardo ainda nem percebia é que estava perdendo a capacidade de sentir. Viver era seguir planos, adquirir bens e esquecer a aventura de arriscar. Sucesso era manipular planilhas pescoço atado à gravata, desfilar com o carro do ano, habitar um imóvel financiado num condomínio de grades lembrando prisão.
Casar significava cerimônia com roteiro, beijos combinados, alegria interpretada por atores charlatões, cujo enredo raso era gravado para sempre num DVD incômodo, esquecido no armário. Um contentamento raso com a vidinha prática na casa decorada, cozinha tão planejada como a rotina dos dois, arremedo de companheirismo sem tempero nem sal, cujo protagonista era a TV em tela plana, no teatro doméstico sem intimidades nem proibições. Paixão era objeto indireto, perturbador, descartável. Mais conveniente era o amor-apólice cheio de itens, um ativo negociável, com preço combinado pelos sócios, sem surpresas ou dramas porque negociar era mais barato.
Qual a paz que eu não quero conservar prá tentar ser feliz?, dizia o poeta na música que ele ouvia há anos, mas que fez, certa noite, Carlos Eduardo parar e prestar atenção. Um sopro de desassossego. Foi quando notou que há muito abandonara os sonhos para viver cada vez mais no limite de si, na mais profunda solidão acompanhada, e sem perspectivas pessoais. Escravo ou déspota? Alguma coisa estava prestes a acontecer, era inexorável.
João Pessoa, 2019.
Comandos em lugar de afagos, encontros esporádicos, apressados, nunca mais o papo à toa, os desabafos, os carinhos. Rita de Cássia nem se lembrava mais quando foi a última vez que seu homem a chamou de Ritinha, de minha vadia, de paixão. Sexo agora não fazia parte das prioridades de um homem tão ocupado em transmitir valores, moldar mentes, criar memórias e líderes capazes de sucedê-lo nos negócios. Só muito raramente ele a procurava e, mesmo assim, com a ajuda de aditivos químicos. Nada mais era igual. Contatos à distância nas diversas mídias, como se eles fossem se tornando apenas sócios daquele empreendimento chamado matrimônio.
Mas, embora inconformada, Rita de Cássia não se sentia exceção. Tinha amigos e sabia que com todos, homens e mulheres, velhos e jovens, a coisa andava do mesmo jeito, intimidade era coisa do passado. A pulsão andava fora de moda, substituída por um vínculo muito forte à produção, ao capital, ao sucesso profissional, contratos em lugar de contato, máquinas imitando homens, homens vivendo como máquinas.
Até mesmo o aspecto físico das pessoas vinha mudando. Parecia que o mundo estava se uniformizando, mesmo jeito de vestir, de consumir. Ninguém mais tinha dentes tortos, um cheiro próprio, brilho nos olhos, uma vontade ou um quê de seu, todos clones de um mesmo ideal.
Filhos se formando em escolas empenhadas em transmitir tecnologia, abolir a filosofia, o verbo ter mais valorizado que o ser, tudo já ensinado assim desde a mais tenra idade. Que tipo de netos ela teria? Parecia que tudo estava igual, mas na verdade era só a compra de impressões. Máquinas simuladoras de caminhada, de prazer, alimento em pílulas, lazer em caixinhas, lembranças de computador, câmeras revelando segredos, primaveras em hologramas, teclas e botões na ponta do dedo, facilitando tudo e afastando cada um de si.
Aos poucos Rita de Cássia foi ficando mais longe da espontânea, alegre e cativante Ritinha. Até seu nome foi mudado no documento único: RC 230492-X. Quando isso aconteceu, ela teve certeza que temia o que já começara.
Exoplan HD 209458b, 2069
Os dias eram tão iguais, tudo de acordo com o programa. Nada fugia do padrão, nem um grama, um drama, um brilho, um pelo, um gosto, nem um incômodo a mais ou a menos naquele viver perfeitinho, esquematizado, equalizado. De repente, o pequeno começou a entoar uma melodia estranha. Aquilo era como um lamento, tão inesperado que chamou a atenção de todos.
De olhos fechados, ele parecia em outra realidade, batia os pezinhos no chão marcando um compasso, uma cadência diferente que a princípio soava música. E então de seus lábios começaram a sair outros sons, um murmúrio, filamentos de palavras numa língua que a maioria já nem reconhecia mais. Era um fio de voz, um timbre que lembrava harpa, e as palavras começaram a brotar, claras. Falavam de um mar que batia na praia e era bonito, o mundo como moinho, um girassol que virava para acompanhar o sol, cabelos em caracol, beija-flor contando segredos.
Como uma bailarina que tivesse escapado da caixinha, o menininho rodava seu corpo tomado de um contentamento que há muito não se via. Seu canto foi impregnando tudo, enchendo o ar de melancolia, incompreensível. Os jovens sentiram um aperto no peito, uma inquietude que não sabiam traduzir. Já os mais idosos lutavam para esconder a lágrima na garganta e se sentiram felizes. O esquecimento não apagou a memória do verde, da natureza e da beleza de uma folha vadia dançando no vento.
Então eles souberam porque há tempos estavam sempre com o adeus na ponta de um pé e uma âncora no outro. Era a velha falta de coragem de dizer basta, arrumar as malas e voltar para o velho planeta que, mesmo destruído por tantas guerras, ainda tinha capacidade de oferecer um sopro de novidade. E então, um a um, foram saindo dali refletindo sobre o que de indispensável mesmo tinham para levar de bagagem.
Conto de Laura Fuentes, que faz parte do Portal Fundação, da Editora LGE, lançado em dezembro de 2009, pela Editora LGE.